Práticas discursivas, sexualidade e gênero: pensando o conteúdo dos livros didáticos.

Reconhecemos o papel da linguagem como instrumento de articulação de significados coletivos e, conseqüentemente, sua função organizadora das formas de conhecer, de pensar e dos modos de agir. Qualquer atividade de produção de discurso acarreta significações que assinalam modos histórico-sociais de representação. Trata-se, portanto, de atividade intersubjetiva, pluridimensional, organizadora dos espaços sociais. Mais especificamente, compreendemos que, no interior das práticas socioculturais, o discurso regula, reproduz e transforma sistemas de representação.

Os sistemas arbitrários de representação articulados através da linguagem regulam as estruturas mentais, emocionais e perceptivas dos sujeitos. Não há linguagem no vazio. Seu grande objetivo é a (re)construção de significados realizada pelos sujeitos durante a interação discursiva, de modo a assegurar os resultados por eles pretendidos. Na interação verbal, as estratégias lingüísticas sempre implicam uma escolha, dentre tantas outras, realizada de acordo com a proposta de sentido que se deseja concretizar, dos efeitos que se pretende causar, dos fins a serem atingidos.

A sexualidade humana e as características de gênero, como construções socioculturais que são, não escapam das representações articuladas no e pelo discurso. No interior das instituições, ou fora delas, as características atribuídas às pessoas de forma diferenciada de acordo com o sexo são apresentadas e discutidas a partir das regulamentações intersubjetivas e sócio-históricas. A escola, como uma instituição social que deveria ter como uma de suas funções contribuir para a formação de uma visão crítica e consciente acerca das relações de dominação e de poder entre os sujeitos, acaba muitas vezes por reproduzir tabus, estereótipos e preconceitos que, dentre outras conseqüências, reafirmam a divisão entre mulheres e homens de modo que, por exemplo, enquanto caberia à mulher o espaço do privado, do doméstico, da subjetividade, ao homem estaria reservado o espaço da esfera pública, da geração de riquezas, da liberdade do direito, ratificando-se, assim, um modelo de vida em que ao homem caberia a produção e à mulher a reprodução.

No ambiente escolar, a representação que se faz das características de gênero e da sexualidade humana pode ser evidenciada, por exemplo, a partir da linguagem presente nos livros didáticos que são utilizados quando se trabalha o conteúdo das diversas disciplinas. A análise desse material, certamente, muito tem a nos revelar sobre as imagens que ali são construídas acerca dos papéis culturais que a sociedade atribui a cada um do que considera “masculino” ou “feminino” e da sexualidade vivenciada pelos sujeitos.

Tradicionalmente, a linguagem, quando enfocada como objeto de estudo, é considerada unicamente como meio de transmitir comunicação superficial e imediata, ficando excluídos, portanto, o seu papel de mediadora das práticas socioculturais e sua dimensão histórica e contextual. Nossa experiência em sala de aula revela que, muito freqüentemente, professores e alunos deixam escapar os efeitos de sentido veiculados pelos textos apresentados nos livros didáticos. Preocupados com a decodificação mecânica das estruturas da língua, eles acabam por desconsiderar as opções feitas pelos autores na descrição de determinadas situações e personagens, na utilização de certos exemplos, no uso de determinadas expressões lingüísticas, dentre outras estratégias de elaboração de significado. Entretanto, todas essas escolhas acabam por revelar, dentre outros vários elementos, o espaço social de onde se fala e a visão que se tem sobre o que se fala. Mesmo quando os autores omitem de seus textos a heterogeneidade dos comportamentos sociais, eles acabam reproduzindo, conscientemente ou não, padrões e estereótipos sociais.

É interessante observar que, a despeito de tantos avanços na ciência e na conquista dos direitos humanos, ainda existem vários tabus e preconceitos que reforçam a hierarquia e as desigualdades nas relações entre homens e mulheres, assim como em relação ao exercício da sexualidade humana. A escola tem um importante papel na desconstrução desse tipo de representação e no rompimento do ciclo de sua reprodução. Portanto, torna-se importante uma investigação de modo a fazer emergir as imagens sócio-histórico-culturais subjacentes aos discursos (re)produzidos pelos livros didáticos no que diz respeito, aqui, à educação sexual, às normas, aos valores, aos tabus, aos preconceitos e às representações da sexualidade e do gênero. Essa investigação pode permitir a análise da qualidade do material didático e o quanto ele pode contribuir para a educação das novas gerações.

~ por COSTA Marcos A. em 23/06/2009.

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